quinta-feira, 28 de abril de 2011

#06 - Pimenta na comida dos outros não é refresco

Bem, finalmente o caos terminou. Eu fiquei apertado nos últimos meses por ter entrado no meio do primeiro bimestre e dar conta de planejar material, provas, trabalhos, testes e afins para os alunos. Foi corrido mas venci esta etapa aprendendo duas lições: sempre lance as notas no diário a lápis e elabora suas provas com um mês de antecedência.

Só para me sentir util, fiz mais um causo da série de 25 causos que vão compor um livro assinado por mim. Continuo achando que a narrativa não está legal mas eles ainda passarão por várias lapidações até ficarem perfeitos. Digamos que sejam apenas um registro de algo que em determinada época foi engraçado.

Boa leitura:

Pimenta na comida dos outros não é refresco

Esta história vai contra todos os princípios do Fome Zero. Aliás, a intenção dela era mesmo matar a fome de alguns plebeus, mais algumas variáveis tornaram o desencadear dos fatos um pouquinho diferente.
Tudo começou com uma turma de terceiro-anistas indo para a tão sonhada Praia de formatura. Os ricos iam para Porto Seguro, vestir logo o micareteiro em sua mente, falar que Claudia Leite é uma diva e que o Trio da Ivete é a melhor coisa do mundo. Os pobres, vão para Guarapari encontrar um bando de mineiros que conhecem sua avó, sua tia e seus primos. É neste grupo que os protagonistas e os figurantes desta história se incluem.
Na teoria, quem vai pra Praia quer descansar, ficar deitado na areia tomando sol e água de coco, nadar, curtir as belezas naturais, etc e tal. Para um bando de adolescentes, a única coisa que importa é estar a quilômetros de distancia dos pais, em um lugar sem lei, sem hora pra voltar pra casa, sem ter de dar satisfação para onde está indo e poder petiscar qualquer pessoa que quiser. Santa liberdade.
Numa das primeiras noites de uma semana que passaria num piscar de olhos, Raia, uma jovem garota dá um coma alcoólico por causa de uma paixonite mal correspondida. Sem contar os diversos casos de desatentos pisando em ouriços do mar e de outros que comem 50 espetinhos de camarão e 75 ostras, andam no sol e depois passam três dias com diarréia, gemendo no banheiro pela madrugada. Foi a primeira vez que um homem cinza caminhou sobre a terra.
Durante a organização da viagem, a preocupação maior é com ônibus e com estadia e ninguém se lembra de preocupar com a comida. Está certo que quem está se divertindo e foi para um passeio não vai comer lasanha com rocambole todo santo dia, mas se for pra comer arroz, feijão e macarrão, que seja pelo menos então comestível. O primeiro vilão dessa jornada era o grude que era oferecido para o bando de 50 jovens. Era todo dia um arroz duro como pedra, um feijão ralo e uma sopa de carne moída que era preciso de horas para pescar algum pedacinho de carne.
Pouco a pouco a péssima qualidade das refeições foi levando os festeiros a uma indignação sem limites. Alguns não agüentavam mais terem que pagar restaurante sendo que investiram uma quantia X de dinheiro no orçamento para a comida e outros achavam injusto ficar miserando comida sendo que tinha muita coisa na dispensa.
Tais opiniões levaram o povo a, numa quinta qualquer, às 23 horas, fazerem um protesto silencioso e realizar um banquete com toda a comida da dispensa. Foda-se os outros dias e quem não comer, devemos matar a fome e a hora é agora.
Um mutirão começou a descascar batatas enquanto o cozinheiro iniciante chamado Lei fazia os preparativos pro arroz e pro frango. Ninguém sabia qual seria o cardápio final, só sabíamos que seria o maior banquete do mundo. “Quantas batatas devemos descascar?” “Todas! Vamo cumê batata frita até o cu fazer bico”. Um jovem apelidado de Sergingas era um dos chefes da rebelião. Liderava os famintos induzindo-os a descascar batatas para comer com fartura. Ele não queria saber se a batata estava pobre, crua, verde, sem sal. Sò queria comer e se vingar das cozinheiras que judiaram de todos por quatro dias à arroz, feijão e sopa rala.
Lei estava todo focado no seu ofício. Queria fazer uma comida gostosa e que agradasse o paladar dos miseráveis. Mas o povo tinha fome e o espírito da rebelião já estava apagando. Alguns foram dormir e pediram para serem acordados quando o jantar (ou café da manhã) ficasse pronto.
Enquanto esperávamos no quarto, pela janela era possível ver Lei cozinhando e cantarolando. Até que Sergingas chega para interromper a sua paz.
- Você vai botar pimenta nesse arroz? – Perguntou ele – fica bom arroz com pimenta.
- Ah cara, não rola. – respondeu Lei – Tem gente que não gosta. É melhor o povo servir o arroz e depois quem quiser bota uma pimenta no seu prato e come.
- Você está falando isso só porque você não gosta de pimenta. Larga de ser egoísta e viadinho cara, num é porque você está cozinhando que tem que mandar na comida não uai. Só uma pimentinha ae, não vai fazer diferença nenhuma.
- Cara essa pimenta é forte demais, sério mesmo. Uma pimenta vai deixar essa panela inteira forte. Já falei que não rola.
Sergingas, impetuoso, pega o frasco de pimenta, derrama umas duas dúzias na palma da sua mão, aproxima-se sorrateiramente por trás de Lei e joga as pimentas na panela.
Lei rapidamente bate a colher de pau na beirada do fogão e sai xingando pela casa afora.
- Aquele desgraçado agora que eu não cozinho mesmo. Negão narigudo de uma figa, nunca gostei dele, ele sempre soube disso....
Enquanto os xingamentos continuavam, o povo não sabia se ria ou se sentia pena de Lei, que sentara na sua cama e começou a resmungar sem fim.
Mas a cena virou cômica aos poucos: Sergingas ficava no fogão remexendo a comida e cantando umas músicas de Escrava Isaura mescladas com Ney Matogrosso ou Arnaldo Antunes só para fazer raiva em Lei, seria cômico se o final não fosse trágico.
Horas depois Sergingas entra no quarto para anunciar que o jantar estava pronto e diz uma máxima para alegrar os participantes:
- Galera, o jantar está pronto! E Lei, em teu prato cuspirei!
Impossível narrar a cena, só quem viu sabe como foi.
A porção de batatas estava enorme, mas desapareceu em poucos minutos e não matou a fome de ninguém. A solução seria comer arroz com frango até explodir o estomago. Todos rechearam seus pratos com montanhas de arroz e sentaram à mesa para comer.
A primeira colherada fez todo mundo largar o talher e ir cuspir o arroz. Estava extremamente picante. Não sabemos como o arroz não ficou vermelho, mas que o gosto da pimenta dominava estava obvio. Em seu canto, Lei comemorava sua vitória contra as humilhações de Sergingas.
Alguns ainda insistiram em fazer uma forcinha e tentar comer o arroz mesmo assim, mas foi impossível. Sergingas foi o primeiro a abandonar o prato e na maior cara de pau dizer:
- Eu falei para não botarem pimenta!
Após isso, o sol já nascia e resolvemos nadar vendo o sol nascer. Foi a única forma de lavar os nossos olhos e corpo com a pimenta lançada neles. Ao voltarmos para a casa, esquecemos que alguém teria que justificar toda a bagunça na cozinha e o desaparecimento da comida, ou melhor, o aparecimento dela dentro de uma lata de lixo. Negamos até a morte (éramos um grupo de 20 entre 50) que nós sabíamos o que aconteceu com a comida e até hoje o mistério parece estar enterrado. Exceto se alguém ler este causo.